Jéssica Sales, bióloga, pesquisadora da APEPI, fala sobre o cenário da pesquisa com Cannabis no Brasil

Tema faz parte do novo curso da APEPI para profissionais de saúde e da nossa entrevista do mês

As pesquisas científicas são cruciais para o avanço do uso medicinal da Cannabis no Brasil. Elas fornecem evidências sobre a eficácia e segurança da planta e seus derivados, ajudam a desenvolver tratamentos baseados em dados sólidos, influenciam políticas públicas e regulamentações, e promovem a aceitação e o conhecimento entre médicos, profissionais de saúde e a sociedade.

Nesta edição do Boletim APEPI, convidamos a bióloga Jéssica Sales Felisberto, pesquisadora da APEPI, para compartilhar o cenário atual e as perspectivas das pesquisas científicas sobre o uso medicinal da Cannabis no Brasil, tema que ela abordará em sua aula “O estado da arte da pesquisa científica com Cannabis no Brasil”, no novo curso da APEPI Escola, sobre o “Uso Terapêutico da Cannabis para Profissionais de Saúde”.

Confira abaixo!

APEPI: Qual é a relevância da pesquisa científica com Cannabis no Brasil atualmente, especialmente no contexto da saúde?

Jéssica Sales: A maior relevância da pesquisa científica com Cannabis no Brasil está na quebra de paradigmas e preconceitos. Apenas com um volume significativo de estudos que comprovem a eficácia e os riscos associados ao uso medicinal da Cannabis, poderemos alcançar maior credibilidade, aceitação popular e regulamentações adequadas. Além de comprovar os efeitos terapêuticos dos canabinoides em diversas patologias, é crucial produzir e divulgar conhecimento científico nacionalmente e internacionalmente, consolidando a qualidade da pesquisa brasileira no cenário global.

Outro ponto importante é a adaptação das pesquisas às condições específicas do Brasil, como clima, topografia, recursos hídricos e luminosidade. Estudos sobre a fisiologia, bioquímica, histologia, toxicologia, agronomia e morfologia da Cannabis em nosso ambiente subtropical são escassos. Portanto, é necessário envolver mais profissionais de diversas áreas para levantar questões e hipóteses que contribuam para o avanço científico e promovam uma abordagem mais holística e integrativa à saúde.

APEPI: Quais são os avanços mais significativos que foram alcançados recentemente na pesquisa com Cannabis no Brasil?

Jéssica Sales: Até recentemente, a maioria das pesquisas sobre Cannabis no Brasil tinha um viés negativo, associando seu uso a perigos e estigmatizando a planta e seus usuários. O levantamento do CEBRID – Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas – mostra que, até o início do século XXI, os estudos eram predominantemente preconceituosos, perpetuando estereótipos negativos.
Eu trago aqui como exemplo “Maconhismo e alucinações” e “Maconhismo crônico e psicoses”, títulos que não apenas perpetuam a noção infundada de que o uso de Cannabis inevitavelmente leva a problemas psiquiátricos, mas também reforçam estigmas prejudiciais em relação aos usuários da planta.

Hoje, o Brasil está se tornando um centro de pesquisas de qualidade que demonstram os efeitos terapêuticos da Cannabis, liderando pesquisas neste tema segundo a Current Pharmaceutical Biotechnology, o que representa um avanço significativo.

APEPI: Como o seu módulo, no curso, aborda os desafios e as oportunidades específicas da pesquisa com Cannabis no Brasil?

Jéssica Sales: A aula apresenta a evolução das pesquisas com Cannabis no Brasil, destacando pioneiros como José Ribeiro do Valle, que quantificou os efeitos dos extratos da planta. Também abordamos as instituições de pesquisa com autonomia para cultivar e estudar a planta, proporcionando uma visão dos desafios e a necessidade de apoio para a continuidade dessas pesquisas. Embora o Brasil ainda não tenha uma legislação específica, já temos uma representatividade significativa no cenário internacional.

O curso explora as áreas de atuação com maior volume de pesquisas globais e revela lacunas em várias disciplinas, como ciências agrárias, biológicas, sociais e históricas, enfatizando a necessidade de maior representatividade nacional.

APEPI: Sob a perspectiva da pesquisa, que tipo de profissionais de saúde se beneficiariam mais ao participar deste curso, e quais competências eles podem esperar adquirir?

Jéssica Sales: Profissionais das ciências agrárias, biológicas, sociais e históricas, entre outras, com certeza irão gostar. Esperamos que os alunos compreendam a história e a evolução do uso medicinal da Cannabis, reconheçam a importância do ativismo e da crítica à guerra às drogas, conheçam os modelos de legislação e regulamentação vigentes e atuem dentro dos desafios éticos do campo interdisciplinar.

APEPI: Qual é o posicionamento da ANVISA para as indústrias farmacêuticas e associações de pacientes no que se refere à pesquisa clínica?

A ANVISA declara que não é seu papel realizar ou financiar pesquisa clínica com Cannabis para fins medicinais, sendo responsável apenas pela autorização de importação e utilização de produtos sujeitos a controle especial. Ou seja, a ANVISA permite o estudo da Cannabis, mas a matéria-prima deve ser importada devido à falta de regulamentação do cultivo no país.

Para realizar uma pesquisa clínica, o patrocinador precisa assumir responsabilidades descritas no Guia de BPC ICH E6(R2), incluindo gestão de qualidade, gerenciamento do ensaio clínico, processamento de dados, manutenção de registros e seleção de investigadores. Associações de pacientes podem conduzir pesquisas se assumirem essas responsabilidades e se tiverem condições jurídicas e financeiras adequadas.

APEPI: Qual é o papel das associações de Cannabis no Brasil no cenário científico?

Jéssica Sales: As associações desempenham um papel fundamental no cenário científico, facilitando a pesquisa, promovendo a educação e defendendo os direitos dos pacientes. Algumas associações, como a APEPI, possuem autorização judicial para o cultivo de Cannabis, o que as aproxima do campo científico, especialmente em aspectos agronômicos. Na APEPI, mais de 30 projetos de pesquisa estão em andamento, colaborando com mais de 26 instituições públicas de pesquisa.

Além de facilitar a pesquisa, as associações educam profissionais de saúde e o público sobre os benefícios terapêuticos e riscos associados ao uso da planta, contribuindo para uma compreensão mais ampla e fundamentada do assunto.

APEPI: Pode compartilhar algum caso ou estudo de sucesso onde a pesquisa com Cannabis teve um impacto significativo na prática clínica?

Jéssica Sales: Um estudo marcante é o de José do Valle, renomado médico e professor da UNIFESP, que foi pioneiro na avaliação do potencial terapêutico dos fitocanabinoides. Suas pesquisas comprovaram o efeito hipnótico dessas substâncias, reconhecido internacionalmente. Outro exemplo é o estudo sobre efeitos anticonvulsivantes liderado pelo professor Luiz Carlini, discípulo de José do Valle. Esses estudos evidenciam o impacto significativo das pesquisas científicas com Cannabis no cenário internacional.

Estamos diante de um horizonte promissor de progresso científico. Universidades e a comunidade científica têm se empenhado em comprovar a eficácia dos fitocanabinoides na saúde humana. Em 2024, a UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina, em parceria com a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), iniciou um dos maiores ensaios clínicos do mundo para avaliar os efeitos de substâncias extraídas da Cannabis sativa no tratamento de patologias como Parkinson e Alzheimer.

Para saber mais sobre o novo curso da APEPI acesse: https://apepi.org/curso-para-profissionais-de-saude/

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